Peripécia Coletiva

Peripécia Coletiva

terça-feira, 27 de março de 2007

Quem sou eu???

Não sou nada.Nunca serei nada.Não posso querer ser nada.À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Janelas do meu quarto,Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é(E se soubessem quem é, o que saberiam?),Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, E não tivesse mais irmandade com as coisas Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada De dentro da minha cabeça, E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu. Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. Falhei em tudo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. A aprendizagem que me deram, Desci dela pela janela das traseiras da casa, Fui até ao campo com grandes propósitos. Mas lá encontrei só ervas e árvores, E quando havia gente era igual à outra. Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar? Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!Génio? Neste momentoCem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,E a história não marcará, quem sabe?, nem um,Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.Não, não creio em mim.Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?Não, nem em mim...Em quantas mansardas e não-mansardas do mundoNão estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,E quem sabe se realizáveis,Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?O mundo é para quem nasce para o conquistarE não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,Ainda que não more nela;Serei sempre o que não nasceu para isso;Serei sempre só o que tinha qualidades;Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem portaE cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, E ouviu a voz de Deus num poço tapado. Crer em mim? Não, nem em nada. Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo, E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha. Escravos cardíacos das estrelas, Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama; Mas acordámos e ele é opaco, Levantámo-nos e ele é alheio, Saímos de casa e ele é a terra inteira, Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido. (Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho, Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei A caligrafia rápida destes versos, Pórtico partido para o Impossível.Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas, Nobre ao menos
TABACARIA (Álvaro de Campos)

segunda-feira, 26 de março de 2007

Alerta! Sempre Alerta...

Bom Dia!
Ando pela Cidade Atroz
A confundir vertiginosamente
Palavra e Bala perdidas.
Sedentas por divisão
CUIDADO! não olha por onde anda?
Não, pois não ando. Sou levado
a Onda tenta levar a Ti e a Mim.
Ele já foi. Levado
ao som de "tá...tá"...
ficou deitado, ainda não levantou
já faz umas 4 horas, ainda está lá.
Eu? eu fujo, vivo fugindo...
andando, correndo e até mesmo voando
entre sirenes, rostos e fogo... tudo cruzado.
E amanhã vou... trabalhar... fugir também
religiosamente outra vez. e outra.. e outra e outras...
Boa Noite!
(Dan Rocha)

"... a poesia está dentro da vida, e não a vida dentro da poesia."

Razão de Ser
Escrevo.E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?
(Paulo Leminski)

A loucura de cada um

Antonio Olinto
O estado esquizofrênico, mais comum do que parece, mereceu de Elza Pádua um estudo que discute o problema da esquizofrenia social como diferente, ou não, da pessoal, tendo sido ela quem usou, pela primeira vez, em seu trabalho de doutorado, a expressão "esquizofrenia social". Talvez seu mestrado anterior em Comunicação Social haja influído em sua percepção de que, na família e na memória de um tempo, inclusive na memória de uma literatura milenar e na de uma escrita de grande influência mais recente, que foi resumida na palavra "mídia", o caso é normal.
Como exemplo do testemunho literário do mal, cita Elza Pádua a peça "O pato selvagem", de Henrik Ibsen (1828-1906), como texto que chega mais perto da realidade humana do que uma investigação psicológica normal. Em "O pato selvagem", nas palavras de Elza Pádua, Ibsen explora o mundo da família Ekdals, que levava uma existência pacífica e tranqüila até a chegada de um jovem, quando passa a se ver fragmentada e destruída em nome da verdade.
A intuição de alguns escritores, em análises que abrem caminhos, tem sido responsável por muitas pesquisas e estudos que levaram inovadores como Freud a mudar o que pensávamos sobre nós mesmos. Analisando a peça de Ibsen, diz Elza Pádua: "A verdade desempenha um papel devastador em `O pato selvagem'. Escrito no final do século XIX, mostra-nos claramente a dicotomia das falas no interior de uma família, na qual o que se fala, vê e ouve, não é correlato com a realidade".
A memória de uma família, a memória de uma infância, a memória histórica do país em que se vive, a memória mesma da história universal, tudo pode influir na formação de uma grande memória pessoal, possível causadora de uma esquizofrenia.
A presença da literatura na criação de uma idéia geral de que tudo é mágico (chamei há pouco, num artigo sobre Jorge Amado, que seu romance "O sumiço da santa" pode ser considerado uma "farsa mágica) ajuda a que se avalie um estado normal de esquizofrenia. E de que maneira se poderia classificar a obra de Franz Kafka (1883-1924) com o seu "O processo" e seu homem virando um inseto? Na linha de uma loucura que, ao contrário, tenha uma estranha lucidez?
A sabedoria de Elza Pádua, em "Esquizofrenia social", se revela de modo muito evidente na escolha de "O alienista", de Machado de Assis, para pontuar seu livro, usando em toda mudança de capítulo, um trecho machadiano que chama a atenção para o ritmo esquizofrênico-literário do estudo.
Começa com estas palavras de Machado: "Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco além dele, em Itaguaí". Ou com esta frase do próprio alienista: "A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente". Ou esta confissão: "O padre Lopes confessou que não imaginara a existência de tantos loucos no mundo". E esta conclusão: "... se tanto homens em quem supomos juízos são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?"
Essas frases de Machado esvoaçando sobre o texto dão uma enorme força aos argumentos da analista, cuja frase final representa o livro: "Iniciei este trabalho acreditando que a esquizofrenia social...era uma patologia das sociedades... com causas e efeitos bem determinados. Termino convencida de que ela é a loucura da normalidade".

Tribuna da Imprensa (RJ) 20/3/2007